quinta-feira, 28 de maio de 2009

DE A a Z, MAIS PARA Z -TEXTO E CONTEXTO por Vera Vieira

Abraço - Gustave Klimt
...bem ali, na cadeia dos braços dele, onde ela se sentia liberta e de onde começava a levitar, sentiu, por vez primeira, seus pés grudados no chão. Tentava seguir escutando as provocantes palavras sensuais murmuradas quase dentro do seu ouvido. Mas de repente ficou surda, gélida, imóvel, desabitada. E não sabia que fenômeno físico a acometia porque apenas uma palavra latejava em sua cabeça: “Ana! Ana! Ana!” Por uns momentos buscou reservas de energias, abandonou o habitat preferido e, olhos nos olhos, perguntou: - “Ana? Que Ana é essa?” E, sem perder uma piscada sequer, observou seu jeito tranqüilo de responder, explicando a razão do ato falho. Mas ela já não prestava atenção no que estava sendo dito. Não importava mais. Porque já se fizera outra vez ausente. E seu cérebro tornou-se um dínamo incansável. Pensou em tantas coisas simultaneamente que foi necessário um esforço para que o caos não se instalasse em seus pensamentos. Exigiu de si uma ordem quase didática. Então lembrou-se que em toda a sua vida, percebeu que o nome de cada um é o registro mais individualizado que se pode ter. Sobrenomes podem ser trocados, por equívocos. Mas nomes, não! Por isso é que manteve a atitude de dialogar com seus interlocutores, sempre denominando seus nomes próprios. E, se, por algum motivo, esquecesse do nome de alguém, jamais se arriscaria a usar algum que lhe parecesse ser ou que se assemelhasse a outro, seguindo a sua intuição. Preferia, de modo delicado, fazer a pergunta: - “Desculpe. Minha memória anda atrapalhada. Qual é mesmo o seu nome?” Daí para a frente, sentindo-se segura, valorizava o outro, evocando seu nome apropriadamente. Mas e essa, agora? Seu dínamo nem pensava em parar. Ali, a poucos passos do seu abrigo aconchegante, ainda em posição de acolhimento (afinal, o movimento primeiro e o derradeiro de um abraço, exigem a mesma dinâmica – um entreabrir de braços) ela deixou-se levar por pensamentos longínquos. E a palavra “individualidade” aflorou como a marca indelével que aflorava já em sua adolescência, através de uma estória narrada por sua mãe. Por uns segundos, ouviu nitidamente sua mãe contar-lhe de um rei que queria casar-se e procurava sua eleita entre o povo. Usou um critério curioso para essa eleição: as pretendentes deveriam apresentar-se nuas diante do rei. Depois de muitos nus femininos, o rei chega à sua predileta: aquela que, única e diferentemente das demais, cobriu não o púbis com as mãos, mas os seios. Porque o rei era da sábia opinião de quem assim se apresentasse, estaria valorizando e resguardando sua individualidade, dados os critérios exigidos. Ela já não pensava havia muitos anos nessa estória. Como hoje ela se apresentou em sua memória de forma tão latente e urgente? Continuava impondo-se uma ordem mental para evitar o caos por completo e, já com um passo atrás, olhava para ele com olhos fixos e atentos, buscando reconhecer o ser que lhe oferecia a célula da qual precisava estar plugada para viver: o seu abraço. E a maquininha cerebral pulsando continuadamente. Então, não sabe de onde veio uma força estranha e ouviu-se dizer: - “Meu nome é Zuleica! E para você, Zuzu!” Não sabia se ele ia entender – deveria, porque ele sempre soube que ela era versada em lingüística – que com aquela mensagem ela estava lhe dizendo: - “Olha a diferença entre Ana e Zuleica! Pior: entre Ana e Zuzu!” Sentiu vontade de, papel e caneta nas mãos, fazer uma transcrição fonética daqueles nomes e deixar-lhe ver as diferenças brutais. Mas não foi o que fez. Um passo mais para trás e não sabe bem até hoje, se viu realmente ou se foi um clarão dentro apenas de sua cabeça, que a fez vislumbrar um caminho. Procurou novamente pelos dois elos que, paradoxalmente, prendiam-na para libertá-la, deu dois passos à frente e...novamente em casa! Abraçou-o ternamente e, com costumeira tranqüilidade e com voz serena, murmurou bem pertinho de seu ouvido. – “Tudo bem, amor. Aprendi a lição. De hoje em diante, Zuzu será ainda mais especial. A cada noite você terá a sua Zuzu e ela será também Ana, Beatriz, Clara, Diana, Eliane, Fabíola, Gisele e todas as que faltam para completar o alfabeto. Até que o círculo se complete e você chegue novamente ao Z!” Ao acabar a frase, desligou-se do porto seguro dos seus braços com a certeza de que voltaria ao cais logo mais, como um barco que precisa de reparos para seguir viagem no dia seguinte. Sentiu-se bem com a atitude que tomou, beijou-o com o desejo de sempre, pegou sua bolsa e encaminhou-se para a porta. Caminhando em direção ao trabalho, terminou de ordenar suas idéias e um sorriso bonito e maduro surgiu-lhe nos lábios. Externava o que ia em seu coração: assim como o primeiro soutien, ela estava certa de que jamais esqueceria a primeira vez em que teve trocado o seu nome. Mas que a idéia de ser múltipla, sem perder a sua verdadeira identidade, a estava encantando, não podia negar. E sua maquininha incansável já lhe apontava idéias: roupas, licores, luz de velas, cerejas, músicas suaves, palavras picantes, transparências, doces safadezas, lençóis de cetim, ..., ..., ..., ...

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