APRENDENDO A VIVER COM CLARICE LISPECTOR
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo. Só pegarei inutilmente uma somba que não ocupa lugar no espaço, e o que apenas importa é o dardo. Construo algo isento de mim e de ti - eis a minha liberdade que leva à morte.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Só há uma coisa que me separa de você: o ar entre nós dois. Às vezes para ultrapassar esse quase cruel afastamento, eu respiro na tua boca que então me respira e eu te respiro. Mas só por um único instante, senão sufocaríamo-nos: seria o castigo que se recebe quando um tenta ser o outro.
Amar os outros é a única salavação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto à própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.
O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago.
*Do livro Aprendendo a viver, Rocco, Rj, 2005
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