terça-feira, 31 de agosto de 2010

FAZES-ME FALTA - Inês Pedrosa


Quando você abre um livro, das duas uma: ou você o devora ou você se esforça para chegar ao fim. Nestes últimos dias ‘devorei’ FAZES-ME FALTA da escritora portuguesa Inês Pedrosa (Rio de Janeiro, Alfaguara, 2010). É leitura que recomendo. Para estimular possíveis leitores, transcrevo o texto da contracapa e alguns trechos que sublinhei. Sempre recebemos e-mails recheados da idéia de que não devemos deixar de demonstrar nossos afetos aos que amamos. Nessa obra de Inês Pedrosa, tal idéia atravessa o livro todo, através do desejo de um novo encontro entre os dois personagens: um querendo voltar à vida para fazer o que não fez e o outro querendo morrer, para, igualmente, realizar o que não logrou no relacionamento entre ambos. Uma nova possibilidade de encontro, uma nova chance de buscar a felicidade que antes, por motivos vários, não fora percebida que estava ali, ao alcance das mãos.

*Sucesso de público e crítica em Portugal e no Brasil, Fazes-me falta é um marco na obra de Inês Pedrosa, uma das mais importantes escritoras portuguesas da atualidade. Com uma linguagem sutil, envolvente, Inês compõe uma narrativa com duas vozes distintas – um homem e uma mulher – que se entrecruzam em breves monólogos e, gradualmente, nos apresentam sua imensa relação, num estado indefinível entre paixão e amizade.
Mas esses são personagens que dialogam num contato partido, insólito. Pois a mulher, cuja voz inicia esse romance surpreendente, morreu ainda jovem. É ela, no entanto, quem ampara seu companheiro da perda e da solidão. Entre as lembranças de encontros e desencontros, caberá a ambos dizer o que nunca puderam pronunciar em vida, e curar antigas cicatrizes do passado.


“O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos”.

“O cheiro do amor vedado que abandonáramos pela paisagem na nossa pré-história. Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus”.

“Tu foste simplesmente à tua vida e eu fui à minha. Como sabes, eu vivo por relâmpagos; contigo partilhei uma trovoada um pouco mais longa do que o habitual. Foi apenas isso”.

“Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de falta que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer”.

“Como é que eu mato a tu morte?”

”O abraço que me deste naquele fim de ano, já lá vão doze anos – terei sabido recebê-lo? Alguma vez te abracei como merecias?”

“Amar em abstrato é muito mais ágil do que amar em concreto”.

“Tomei a amizade como uma versão adulta e vacinada do amor, o que significa que transferi para a casa dela a artilharia pesada do meu batalhão de afetos. Substituí o Príncipe Encantado pelo Amigo Maravilhoso, que eras tu. ... Nada nos poderia separar, porque estávamos naturalmente livres das armadilhas do desejo, da via-sacra da posse e do sacrifício. Quanta candura. Uma vida inteira desperdiçada em candura – e nem sequer tive tempo para mudar o mundo”.

“Nós éramos um do outro e não o descobrimos, preferimos respeitar os protocolos de nossa era, dar prioridade à voz obrigatória do corpo. Nós éramos um do outro de outra maneira – de uma maneira escura, espessa, transcendente”.

“Sempre fui nostálgica, sobretudo do que não chegou a acontecer”.

“Morri tantas vezes antes de morrer – morri sempre que o amor parava, e o amor estava sempre a parar dentro de mim”.

“...todo o saber chega demasiado tarde. Demasiado tarde. São estas as palavras mais tristes de qualquer língua”.

“...tu, aquele que mora na noite do meu pensamento destroçado”.

“E seria outro. Quantos restos de ti fazem parte de mim”.

“...preciso de abraçar aqueles que um dia souberam ser amados por mim, todos os que se deixaram imaginar pelo precipício, criaturas fugitivas que me alongaram a sombra ao partir. Escorrerá alguma sombra de mim no pensamento de suas vidas?”

“Pode-se dormir no ombro de alguém uma vida inteira e morar noutros corpos, que nunca se tocaram”.

“Porque tu morreste, experimento pela primeira vez o sopro da eternidade – acredito agora que há um lugar do lado de lá onde tu me esperas”.



CANTEIRO DE ROSA - Frei Betto



Sabença é cuidar do que foi e será, perene como lembrança de estrada de ferro. Passa o trem, passa a boiada, mas a saudade não passa, bóia no coração, volátil. Daí o arrancar do olvido a memória, desenterrar símbolos, cavucar histórias e ressuscitar palavras, que têm canto e plumagem.É o que faz a gente da doutora Carina Guimarães, toda carinho, no cuidado do primo Rosa. Falo do João, o Guimarães, das veredas, da terra do coração, trás montanhas.
Andei por lá trasanteontem, reencantado pelo verbo.
Ave palavra! A estação ferroviária sob a janela, órfã de trens, só o apito agônico e forte a pastar nos ouvidos dos mais velhos, eco nostálgico de um passado perdido; o armazém de seu Floduardo, com suas prateleiras desnudas, sacarias carunchadas, rolos de fumo encobritados no balcão e, num canto, o retrato embigodado do pai rigoroso.
Costurada à venda, o sobrado da família, meia-água à frente de vasto quintal, onde meus olhos tentaram descobrir pontes de formigas. Ali o cenário se recompõe: o quarto em que Rosa brotou; à frente, do lado oposto do corredor, o da avó, enjanelado por dentro; a cozinha tímida; as salas silenciadas da solenidade de pratos e talheres e, agora, transubstanciadas em museu.
Por quartos e salas, sacramentos espalhados por antros e recantos: a Remington em que Rosa cavalgou a alma, desembestando-a em Grande Sertão: Veredas; a coleção de gravatas borboletas, pousada na cristaleira; o diploma encardido da Academia Brasileira de Letras; e retratos do menino míope, engasgado por sentimentos cavilosos, urdidura de gênio; o marido afetuoso sob arcadas de Florença; o pai encapetado com os filhos pequenos; o diplomata encasacado; os amigos, muitos.
Nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais; sou mineiro, declarou a Gunter Lorenz, dois anos antes de se reencantar.
No jardim, os ossos de uma jabuticabeira agasalhada por florida buganvília, a horta fitocultivada, e três degraus de arquibancadas para os visitantes se enlevarem, atentos à recitação dos Contadores de Estória Minguilim, jovens trazidos do risco à magia das letras. A prima preserva tudo, prenhe de zelo e desvelo, ombreada a Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, secretário estadual de Cultura, que de Minas conhece e muito, de nonada à travessia.
Minas toda, tirante a miséria, é patrimônio. E aquela é casa de se visitar, adoçar de cultura o turismo, enfileirar alunos e arranchar escolas, abrir porteiras e deixar os leitores ruminar Rosa, pétala a pétala, desbastando espinhos até embriagar-se do sumo. Epifania.


RUA DAS TULIPAS


O QUE FAZEMOS QUANDO OS SONHOS SÃO GRANDES DEMAIS?



segunda-feira, 30 de agosto de 2010

DE SAUDADES...

Depois de muitas frases e de muitos poetas trazidos ao diálogo, concluimos que o melhor seria dar um descanso às nossas mentes e, sem nenhuma poesia, atendendo às coisas puramente físicas, houvemos por bem nos decidir por belas e generosas fatias de torta de limão (hummmmm) seguidas de café (argh!)...rs* Muito tempo depois, quando certamente todos já não se ocupavam do tema e deveriam estar dormindo, pus-me a 'pesquisar' (pisc*)... E de A a Z, encontrei algo que me bastou. É o título de um poema de Virgínia Alencar e a imagem é da designer Mónica Santos. Em poucas palavras, a definição mais contundente que achei de saudade.




SE - Rudyard Kipling



PRESENÇA - Mário Quintana


É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.



domingo, 29 de agosto de 2010

O RAIO DA PAIXÃO E A CONSTRUÇÃO DO AMOR- Mário Sérgio Cortella


Nós vivemos numa civilização e, em sociedade, a irracionalidade é a princípio inaceitável. Mas a paixão, que é irracional, é aceita – e é aceita porque somos seres apaixonados.
Não há invenção sem dor e paixão, assim como não há religião sem temor ou terror, ou a possibilidade de conceber um ser superior sem você ter de se reconhecer como inferior. Da mesma forma, não há necessidade de divindade se alguém se considera completamente potente. Mas, se você supõe que uma entidade pode machucar ou “puxar o tapete”, é preciso encontrar modos de agradá-la. A fonte da religião é o terror, mas seu significado vai muito além.
De maneira geral, a Ciência, a Arte, a Filosofia e a Religião são quatro caminhos que têm por trás uma mesma questão: “Por que algo – nós, o mundo, o universo – existe?” Ou: “Por que existimos em vez de não existirmos?”. Reconheça que é um tema que desperta paixões, assim como o futebol e a política...
Observo aqui que a palavra latina “paixão” vem do grego pathos, que é a raiz da palavra patologia, que carrega consigo doença e afecções, ou seja, aquilo que te afeta (quando o mal está dentro, é uma infecção). Por isso, a Paixão de Cristo. Não é “paixão” porque Cristo estava apaixonado por alguém, e sim porque sofreu. Paixão é transtorno, é ebulição. E a metáfora do frescobol* nos ajuda a lembrar que uma das coisas que precisamos aprender é transformar paixão em amor.
A paixão agride, suspende todas as referências, suspende o tempo e o espaço. A paixão é a suprema negação do óbvio. Um casal de apaixonados num banco de parque está sempre sozinho – ao redor não existem crianças, bolas, cães, parque, trânsito lá fora, cidade em volta. A paixão é uma explosão de energia que exige um desgaste imenso para sustentar sua produção de energia. Se ela não for transformada em amor, ela sucumbe em si mesma, implode, se transforma em um buraco negro – buracos negros se originam em estrelas superpoderosas que, num dado momento, deixam de produzir energia e, por isso, passam a consumir apenas a energia que já têm. E aí elas têm, digamos, um momento de paixão fulgurante, que é quando explodem. No momento da explosão são chamadas de supernovas. Mas, depois disso, elas desabam, arrastando tudo ao redor, inclusive a gravidade, e se transformam num buraco negro.
O psicanalista alemão Erich Fromm afirmava que o amor imaturo diz que te ama porque precisa de você. E que o amor maduro diz que precisa de você porque te ama. A paixão é movida por necessidade. Por esse ponto de vista, nós não conseguimos existir sem paixão – mas ela não pode ser contínua, pois não pode fornecer, para usar uma palavra da moda, sua própria sustentabilidade.
A paixão tem de ser o ponto de partida, mas não pode ser o ponto de chegada. Ela precisa ser transformada em algo que seja menos explosivo, e mais propício à constância, como o amor. Gosto muito de uma frase de Roland Barthes, escritor e filósofo francês, que consta de um livro chamado Fragmentos de um discurso amoroso: “Você não ama alguém, e sim ama o amor”.
Uma pessoa que te ama é aquela que guarda o teu amor consigo. Quando ela deixa de te amar, ela também deixa de guardar o teu amor dentro dela.
Assim, o amor é uma sensação de pertencimento recíproco que almeja a plenitude. No fundo, o amor é uma identidade, pois eu me encontro no outro ou na outra. O amor tem turbulências, mas ele não é confrontante, e sim conflitante. O amor, ao contrário da paixão, oferece paz – sendo que paz não é ausência de conflitos, e sim a capacidade de administrar conflitos para que não haja ruptura. Assim, se você consegue guardar o meu amor, se cuida dele, eu fico. Mas, se não cuida, eu parto. Há também os casos em que o amor não é cuidado nem guardado e a pessoa resolver ficar mesmo assim. Nesses casos, isso é conveniência, e não convivência.
Ao contrário do amor, a paixão não tem a ver com o outro, e sim com você mesmo, com a sua obsessão por uma pessoa ou situação. Há pessoas que são viciadas em paixão, na adrenalina da paixão, para alimentar uma necessidade que só pertence a si mesmo, e não ao outro.
Ninguém é isento de paixão, mas é preciso ter em mente que a paixão é eventual e rápida. A paixão, insisto, consome uma energia impossível de sustentar. Se o amor e a vida são uma maratona, a paixão são os cem metros rasos – e todo mundo que já viu uma corrida dessas sabe que o atleta a termina mal conseguindo se sustentar em pé, tamanho o consumo de energia. Ninguém consegue se manter em disparada, há um limite físico para isso. A paixão é como um raio; ela brilha, ilumina, tem uma energia imensa – uma energia que precisa ser contida ou canalizada para não fulminar aquilo que está na sua frente, uma energia que precisa ser transformada para que não origine uma perturbação ou um transtorno.
Ao contrário da paixão, o amor compreende. Compreensão é diferente de dominação ou de aceitação, até porque alguém que não seja um preconceituoso contumaz só pode aceitar ou rejeitar depois de ter compreendido. Compreender é ser capaz de entender as razões, mesmo sabendo que razões são sempre provisórias. Quando você tem consciência da fugacidade das razões, mata qualquer indício de fanatismo e se torna uma pessoa mais acolhedora, apta a receber o outro como a um igual. Caso contrário, está à mercê da paixão, vulcânica e devastadora.
Só quando a paixão arrefece, quando fica sob controle, que pode se transformar em amor e, assim, em paz de espírito. Observo mais uma vez que paz não é ausência de conflito ou a inexistência de desacertos, e sim a capacidade de administrar as turbulências sem se perder.
São inevitáveis as pedras no meio do caminho (quando Drummond escreveu sua poesia, ele estava brincando com Olavo Bilac, que tem um poema chamado No meio do caminho da nossa vida, que, por sua vez, é o primeiro verso da Divina Comédia, de Dante Alighieri).
Mas pedras são apenas pedras, umas grandes, outras menores. São obstáculos a serem contornados. O que não pode acontecer é que as pedras se tornem barreiras. Pedras são fronteiras: elas demarcam um território de risco, mas não indicam impossibilidade.
Impossibilidade é haver paz enquanto há paixão.

*
Explicando a metáfora do frescobol, escrita num outro texto do mesmo autor, no mesmo livro, páginas antes do texto aqui transcrito:

A anulação do outro é o ápice do confronto e o confronto deve ser evitado a todo custo. Isso vale para o terreno das idéias, da convivência, do casamento. Aliás, para o campo dos relacionamentos, o grande pensador Rubem Alves criou uma imagem excelente. Para ele, os relacionamentos devem ser como um jogo de frescobol, e não como uma partida de tênis. Eis aí uma boa lição. No tênis, você usa toda a sua competência para que o outro receba a bola do pior modo possível. Você procura sacar de um jeito que ele não veja nem a cor da bola. Toda vez que o oponente erra, você se congratula. No frescobol, por sua vez, você capricha para que o outro receba a bola do melhor modo que consegue. Quando manda uma bola atravessada, você pede desculpas e procura não repetir mais isso, pois quer repassar a bola ao outro com perfeição. Esse é o sonho, a meta a ser alcançada, embora muitas vezes a vida se pareça mesmo com uma partida de tênis.
Livro: O que a vida me ensinou, Mário Sérgio Cortella, Saraiva:Versar, 2009.


sábado, 28 de agosto de 2010

UIAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!!...rs*



MARIANA ALCOFORADO II

Na busca por imagens para colocar junto ao texto anterior, encontrei um vídeo sobre uma apresentação de peça de teatro das Cartas Portuguesas. Posto-o aqui por ter achado muito bem feito: texto, som e imagens, tudo lindo!


MARIANA DE ALCOFORADO

Janela de Mariana - Foto Lissabona

De repente, buscando um livro em nossa biblioteca, caiu-me ao pé, literalmente, As Cartas Portuguesas, de Mariana Alcoforado. A busca foi interrompida pelo desejo de voltar a deitar os olhos nessa obra que trata do amor incondicional, desafortunadamente não correspondido, de uma freira portuguesa do Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja. A obra está constituída por cinco cartas dirigidas ao francês Noel Bouton de Chamilly, o Conde de Saint-Léger, que lutou em solo português pela ocasião da Guerra da Restauração. Até hoje se discute se Mariana é a verdadeira autora dos textos. Mas, para mim, o que importa é a literatura: alguém os escreveu e o fez de modo admirável. Como mulher que sempre gostou de autoras que costumo definir como 'porretas', quero crer que tenha sido mesmo Mariana a autora das cartas. Em outro momento trarei mais uma mulher 'porreta" para este espaço: a também sóror Juana Inés de la Cruz. Quando conheci a estas duas, em bancos escolares há já algum tempo, foi um arrebatamento tamanho que até hoje me lembro das boas vibrações em meu espírito. É sempre assim: vibro com as pessoas, e, de forma muito especial e historicamente justificada, vibro com as mulheres que são fortes, que nasceram antes do seu tempo, foram severamente incompreendidas, e, apesar de tudo e de todos, fizeram valer intensamente as suas vidas. Das cinco cartas de Mariana, escolhi a terceira. Parece longa, a princípio. Mas é só começar e a fruição acontecerá!

Terceira Carta

- Que vai ser de mim, e que queres tu que eu faça? Estou longe de tudo o que futurei! Contava que me escrevesses de todas as terras por onde passasses e que as tuas cartas fossem muito grandes. Cuidava que desses alento à minha paixão com a esperança de tornar a ver-te; que uma confiança completa na tua fidelidade me trouxesse algum sossego, e que assim eu ficasse numa situação mais aliviada sem dores ainda maiores. Chegara até a formar uns leves projetos de empregar todos os esforços de que fosse capaz para me sarar, se viesse a ter a certeza de que me esqueceras de todo.
O teu afastamento, alguns rebates de devoção; o receio de estragar sem remédio a pouca saúde que me resta com tantas vigílias e apoquentações; a minguada esperança no teu regresso, a frieza da tua afeição e dos teus últimos adeuses, a tua partida fundamentada em pretextos fracos, e mil outras razões boas demais e demasiado simples pareciam oferecer-me um amparo firme, se dele necessitasse. Só e tendo de batalhar comigo mesma, mal podia desconfiar de todas as minhas fraquezas, nem adivinhar tudo o que hoje padeço.
Pobre de mim! Digna de lástima que sou por não poder partilhar contigo as minhas penas e ser eu só a desgraçada! Tira-me a vida este pensamento. Morro de desgosto ao imaginar que nunca gozaste verdadeiramente os nossos enlevos. Sim, conheço agora a má fé de todas as tuas intenções. Atraiçoavas-me todas as vezes que me dizias que o teu maior contentamento era estar a sós comigo. Somente às minhas importunações devo os teus transportes e afagos... Formaste de caso pensado a intenção de me entontecer. Consideraste a minha paixão uma vitória tua sem que o teu coração nela entrasse em coisa nenhuma. És assim tão vil e tens tão pouca delicadeza que não soubeste tirar melhor proveito dos meus arrebatamentos? E como é possível que com tanto amor eu não conseguisse dar-te uma felicidade perfeita? Lamento, por amor de ti apenas, as venturas sem par que perdeste. Que mau sestro te levou a não as querer gozar? Ai, se as provaras, verias que eram mais gostosas que a satisfação de me haveres seduzido, e reconhecerias que se é mais feliz e que é bem mais agradável amar com ardor do que ser amado.
Não sei já o que sou, nem o que faço, nem o que quero. Espedaçam-me impulsos desencontrados. Alguém poderá imaginar um estado tão lastimoso? Amo-te doidamente e quero-te também que nem me atrevo a desejar que em ti se renovem arrebatamentos iguais aos meus. Morria ou acabaria por morrer de mágoas se estiver certa de que não podias ter descanso, que a tua vida era só desassossego e desvairo, que passavas o tempo a chorar e que tudo te causava desgosto. Se mal posso com as minhas penas, como agüentaria a dor de ver as tuas, que sinto mil vezes mais?
Apesar de tudo não tenho ânimo para desejar que não me tragas no pensamento. E, para falar com franqueza, tenho ciúmes pavorosos de quanto possa dar-te contentamento e diz respeito ao teu coração, e do que te cause agrado em França.
Não sei por que te escrevo. Vejo bem que só te mereço compaixão e não quero a tua compaixão. Desprezo-me a mim mesma quando considero em tudo o que te sacrifiquei. Perdi a reputação, provoquei as iras dos meus, os rigores das leis deste Reino para com as freiras e a tua ingratidão que me parece o pior de todos os males.
E sem embargo sinto que os meus remorsos não são verdadeiros, que do íntimo do coração desejava ter corrido, por amor de ti, perigos ainda maiores e que é para mim um funesto prazer haver arriscado por ti a vida e a honra. Não devia eu dar-te o que tivesse de mais valioso? E não é justa a minha satisfação por ter procedido como procedi? Afigura-se-me que ainda não estou bastante satisfeita com os meus desgostos nem com o meu demasiado amor, embora não possa, ai de mim, iludir-me bastante para estar contente contigo.
Vivo ainda, pérfida que sou, e faço tanto para conservar a vida como para a perder. Ai, morro de vergonha! Mas então este desespero só é verdadeiro nas minhas cartas? Se te amasse tanto como te tenho dito mil vezes, não era para estar morta há muito tempo? Enganei-te e afinal de contas és tu quem tem razão de queixa contra mim. Ai, por que não te lamentas, meu bem?
Vi-te partir, já não posso esperar que voltes e continuo a respirar. Atraiçoei-te, peço perdão. Mas não mo dás. Trata-me com mais rigor. Não julgues os meus sentimentos bastante sinceros. Sê mais custoso de contentar. Manda-me morrer de amor por ti. Imploro-te que me dês algum adjutério para vencer a minha debilidade de mulher e acabar com tantas irresoluções, se preciso for por um ato de verdadeiro desespero. Um fim trágico obrigava-te com certeza a pensar muitas vezes em mim e ficarias a crer mais em minha memória. E talvez te compungisse mais uma morte fora do comum. Não valia mais do que a situação a que me reduziste?
Adeus, quem dera que não te houvesse conhecido! Pobre de mim, sei bem que estou a mentir e reconheço que neste mesmo instante em que te escrevo sou mais feliz no meio das minhas desventuras, amando-te, do que seria se não te houvesse conhecido! Sujeito-me, pois, sem me queixar da minha má sorte já que não quiseste torná-la melhor.
Adeus, promete lastimar-me carinhosamente, se eu morrer de mágoa, e que ao menos o desconforme desta minha paixão te desgoste e afaste de tudo. Esta consolação me chega e se é forçoso que te perca para sempre, quisera ao menos não te deixar a outra. Seria uma grande crueldade tua servires-te do meu infortúnio para te fazeres amar e gabares-te de que acendeste a maior paixão que houve no mundo.
Adeus, ainda uma vez. Escrevo-te cartas muito grandes, não tenho contemplação por ti, perdoa-me. Quero crer que terás alguma indulgência para com uma pobre doida que não o era, bem sabes, antes de te amar.
Adeus, parece-me que te falo demais do estado lastimoso em que me encontro. Mas agradeço-te do íntimo do coração os tormentos que me deste aborreço o descanso em que vivi até ao momento de te conhecer.
Adeus, a minha paixão cresce a todo o instante. Ai, quantas coisas para te dizer!


VIVER NÃO DÓI - Carlos Drummond de Andrade

Viver não dói!
Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor? O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana,
que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.
Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido juntos e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade. Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em
que poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu. mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável, o sofrimento é opcional.


BESOS - Gabriela Mistral


Hay besos que pronuncian por sí solos
la sentencia de amor condenatoria,
hay besos que se dan con la mirada
hay besos que se dan con la memoria.
Hay besos silenciosos, besos nobles
hay besos enigmáticos, sinceros
hay besos que se dan sólo las almas
hay besos por prohibidos, verdaderos.
Hay besos que calcinan y que hieren,
hay besos que arrebatan los sentidos,
hay besos misteriosos que han dejado
mil sueños errantes y perdidos.
Hay besos problemáticos que encierran
una clave que nadie ha descifrado,
hay besos que engendran la tragedia
cuantas rosas en broche han deshojado.
Hay besos perfumados, besos tibios
que palpitan en íntimos anhelos,
hay besos que en los labios dejan huellas
como un campo de sol entre dos hielos.
Hay besos que parecen azucenas
por sublimes, ingenuos y por puros,
hay besos traicioneros y cobardes,
hay besos maldecidos y perjuros.
Judas besa a Jesús y deja impresa
en su rostro de Dios, la felonía,
mientras la Magdalena con sus besos
fortifica piadosa su agonía.
Desde entonces en los besos palpita
el amor, la traición y los dolores,
en las bodas humanas se parecen
a la brisa que juega con las flores.
Hay besos que producen desvaríos
de amorosa pasión ardiente y loca,
tú los conoces bien son besos míos
inventados por mí, para tu boca.
Besos de llama que en rastro impreso
llevan los surcos de un amor vedado,
besos de tempestad, salvajes besos
que solo nuestros labios han probado.
¿Te acuerdas del primero...? Indefinible;
cubrió tu faz de cárdenos sonrojos
y en los espasmos de emoción terrible,
llenaron sé de lágrimas tus ojos.
¿Te acuerdas que una tarde en loco exceso
te vi celoso imaginando agravios,
te suspendí en mis brazos... vibró un beso,
y qué viste después...? Sangre en mis labios.
Yo te enseñe a besar: los besos fríos
son de impasible corazón de roca,
yo te enseñé a besar con besos míos
inventados por mí, para tu boca.


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

NA ESCRITA... - JM Restivo Braz

Foto Juliane MC

Na escrita dos outros
Navega-se à vista
A costa está ali
Ao virar da página
Ao fim do capítulo
Nem uma só palavra por parir
Num mar de ondas já domesticadas

E o verso
Por mais que me resista
Está já feito a partir do título
Nem chega a haver o gozo da conquista
Na folha marcada para ler de novo

Nunca naufraguei num livro que não quisesse abrir....



CANTARES DE SALOMÃO 7



Voz do esposo
1 Quão formosos são os teus pés nos sapatos, ó filha do príncipe! Os contornos de tuas coxas são como jóias, trabalhadas por mãos de artista.
2 O teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre como montão de trigo, cercado de lírios.
3 Os teus dois seios como dois filhos gêmeos de gazela.
4 O teu pescoço como a torre de marfim; os teus olhos como as piscinas de Hesbom, junto à porta de Bate-Rabim; o teu nariz como torre do Líbano, que olha para Damasco.
5 A tua cabeça sobre ti é como o monte Carmelo, e os cabelos da tua cabeça como a púrpura; o rei está preso nas galerias.
6 Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias!
7 A tua estatura é semelhante à palmeira; e os teus seios são semelhantes aos cachos de uvas.
8 Dizia eu: Subirei à palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus seios serão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração como o das maçãs.
9 E a tua boca como o bom vinho...
Voz da esposa
...para o meu amado, que se bebe suavemente, e faz com que falem os lábios dos que dormem.
10 Eu sou do meu amado, e ele me tem afeição.
11 Vem, ó amado meu, saiamos ao campo, passemos as noites nas aldeias.
12 Levantemo-nos de manhã para ir às vinhas, vejamos se florescem as vides, se já aparecem as tenras uvas, se já brotam as romãzeiras; ali te darei os meus amores.
13 As mandrágoras exalam o seu perfume, e às nossas portas há todo o gênero de excelentes frutos, novos e velhos; ó amado meu, eu os guardei para ti.



quarta-feira, 25 de agosto de 2010

AMOR ALÉM DA VIDA - Izabel Dias

Da janela de sua alma
onde contemplava meu reflexo
eu vi o amor acordar,
e compreendi finalmente
o sentido de sermos dois em um...
Já não é preciso palavras;
a linguagem dos sentidos
fala por nós
e o amor se faz presente
a todo momento,
seja ao teu lado,
nos sonhos ou
na certeza de ser
amor além da vida...



THOMAS...




SOLIDÃO X COMPANHIA - Nietzsche

Odeio quem me rouba a solidão
sem em troca me oferecer
verdadeira companhia.



DESPEDIDA - Cecília Meireles

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um pouco de luz em você...larilarai...

Minha amiga-mais-querida-que-irmã vive me dizendo, através de variadas formas, que todos merecemos um 'pouco de luz em nós'. E sempre me remete à lembrança uma canção cantada pelo grupo Roupa Nova. Há já alguns dias venho mexendo nas minhas boas lembranças e acabei, ontem, ouvindo a canção e pensando sobre o merecimento de uma luz sobre mim. Pois bem, há um tempo para cada coisa debaixo do sol. E há um sol amar_elo que entra pela minha janela e me aquece e me faz brilhar, noite ou dia. E derrama luz para os meus caminhos, é verdadeiramente uma luz-guia. Xô, nuvens negras! Aprender que o sol e o seu calor sempre estão dentro da gente é muito confortante. Essencial é nunca desistir de o buscar...






De sucesso e prazeres...




sexta-feira, 20 de agosto de 2010

ODA A LA LAGARTIJA - PABLO NERUDA

Havia uma resposta que faltava...rs* Minha memória explodiu em relâmpagos vários mas incertos. Agora...achei, achei...acheiiiiiiiiii! Embora eu não goste muito desse bichinho, devo confessar que até já nutro certa simpatia por ele... E, na busca por uma foto, achei outros significados interessantes, inusitados para mim....rs* Mas esse é tema para outro momento (pisc*). De todas as formas, a cada releitura de Don Pablo, novas páginas, novos pensamentos, novo eu!


Foto Philipe3d

Junto a la arena
una
lagartija
de cola enarenada.

Debajo
de una hoja
su cabeza
de hoja.

De qué planeta
o brasa
fría y verde
caíste?
De la luna?
Del más lejano frío?
O desde
la esmeralda
ascendieron tus colores
en una enredadera?

Del tronco
carcomido
eres
vivísimo
retoño,
flecha
de su follaje.
En la piedra
eres piedra
con dos pequeños ojos
antiguos:
los ojos de la piedra.
Cerca
del agua
eres
légamo taciturno
que resbala.
Cerca
de la mosca
eres el dardo
del dragón que aniquila.

Y para mí,
la infancia,
la primavera
cerca
del
río
perezoso,
eres
tú!
lagartija
fría, pequeña
y verde:
eres una remota
siesta
cerca de la frescura,
con los libros cerrados.

El agua corre y canta.

El cielo, arriba, es una
corola calurosa.

DE CORES E SABORES


HÁ DIAS DE CORES E SABORES
OUTROS HÁ, DE DORES E LABORES
HOJE É UM DIA ASSIM...
DE ARCO-ÍRIS NOS MEUS OLHOS
DE CARAMELOS EM MINHA BOCA!

NUVEM NEGRA- Gal, Chico, Djavan



CANTARES - Joan Manuel Serrat e Joaquín Sabina




Provérbios e Cantares - Antonio Machado


Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.

***

Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.

COM LICENÇA POÉTICA - Adélia Prado


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e,
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade da alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

ALBERT


CHICO