sábado, 30 de maio de 2009

SEM MEDO DE SER FELIZ por Vera Vieira


Primeiro, a luta da ancestral.
Depois a luta para sobreviver
sem haver nascido.
Em seguida, a liberdade!
E lá vai ela...
Locomoção trôpega
Marcha constante
Objetivo único
na corrida de sua vida.
Como o desejo de água no deserto escaldante
Como o abrigo nos braços amados
Como a ilha verde para o náufrago
Como chegar à casa depois de uma longa viagem
...o mar!
E que venham os predadores!
E que venham as altas ondas!
E que venham os choques térmicos!
E que venham as mudanças de marés!
Não importa!
Entre tantas outras que não sobreviverão
ela está lá, correndo, lutando
para alcançar o seu fim:
ser feliz, alcançar o mar, fazer a sua história!
Não está atenta se está em primeiro ou último lugar
Não está atenta se pensam que é morosa ou apressada
Não está atenta se julgam seus métodos adequados ou não
Não está atenta para nada além da conquista do seu destino:
...o mar!
Apenas parte, corre instintivamente, como diz o poeta,
“sem medo de ser feliz”!


Adoro as tartarugas marinhas.
Detesto parecer-me às terrestres!

* * * * * * * * * * * * * * *

Saibam mais sobre tartarugas marinhas - - - -> http://www.tamar.org.br/

sexta-feira, 29 de maio de 2009

POR TEUS OLHOS, SHARBAT! por Vera Vieira


O texto que segue foi escrito há já algum tempo. Mas como as duas figuras humanas envolvidas nessa história têm moradia permanente em minha memória, coloco-o aqui para que, de maneira simples, uma vez mais, possam ser homenageados criatura e criador.

Para saber mais sobre a história de Sharbat -> http://pt.wikipedia.org/wiki/Sharbat_Gula

Para saber mais sobre o fotógrafo Steve McCurry -> http://www.stevemccurry.com/main.php


Por teus olhos, Sharbat...


Por teus olhos, Sharbat...
A mulher jovem, que fui, sofreu
Captando em teu olhar, único no mundo,
A duvidosa esperança de uma vida
Adolescendo nos rigores de uma guerra incompreensível.


Por teus olhos, Sharbat...
Passei anos da minha vida, como muitos,
Lembrando, imaginando, orando pela tua.
De tempos em tempos, lá estavas tu, em minhas mãos
Questionando-me com teu maravilhoso, indescritível olhar.


Por teus olhos, Sharbat...
Imortalizado em tua primeira fotografia
- e única, por longos dezessete anos,
reportei-me à história das mulheres no mundo
e desejei que pudesses, porque ainda tão jovem,
viver de forma mais digna a tua história.


Por teus olhos, Sharbat...
De novo, através da tua segunda fotografia,
Percebo que minhas preces e as do mundo inteiro
Não foram ouvidas por completo, como desejamos.
Mas como um prêmio mais do que justo – estás viva!
E é por teus olhos que o mundo se sensibiliza.


Por teus olhos, Sharbat...
E agora, porque foste reencontrada, depois de grande esforço,
E tuas duas fotografias rigorosamente examinadas,
Não restou dúvida de que “só olhar é o mesmo”
Como foi veiculado, com estrondoso sucesso, na mídia mundial.


Por teus olhos, Sharbat...
Ouso discordar dos noticiários todos.
Porque agora, além do que já me revelavam teus olhos,
Ouvi tua voz, percebi tua força
Vencendo a imposta timidez cultural.
E sinto em meu coração que ainda és a mesma, inteiramente.


Por teus olhos, Sharbat...
E pelo feliz encontro com o olhar de Steve, o fotógrafo,
O mundo, e eu nele, pudemos aprender a lição, desde longe:
- o quanto de poder tem um olhar!
E foi por teu olhar que milhares de voluntários
Partiram em socorro de outras jovens afegãs, como foste um dia.


Por teus olhos, Sharbat...
Corações do mundo inteiro se uniram
E por tuas duas reveladoras fotografias
Alertaste a todos os humanos:
Se um de nós não é feliz, ninguém o é completamente.
Grata, Sharbat, pela lição que teus olhos nos trazem.


quinta-feira, 28 de maio de 2009

RECADO por Vera Vieira


¡OYE!
PON ATENCIÓN
EN LO QUE DICE
MI CORAZÓN AL TUYO

SI ME DESFALLEZCO
O SI ME PASA
ALGO MÁS GRANDE AÚN
QUIERO QUE SEPAS
QUE FUE TAN SÓLO
PORQUE EN MI CORAZÓN
HABITÓ UN AMOR
MUCHO MÁS GRANDE QUE ÉL

SENCILLAMENTE HABRÁ SIDO
PORQUE ÉL REVENTÓ
NO RESISTIÓ LA REPRESA
DE TANTOS AFECTOS

ESO ES
LO QUE ESTÁ EN MI CORAZÓN

LLÉVATELO POR SI ACASO...

DE A a Z, MAIS PARA Z -TEXTO E CONTEXTO por Vera Vieira

Abraço - Gustave Klimt
...bem ali, na cadeia dos braços dele, onde ela se sentia liberta e de onde começava a levitar, sentiu, por vez primeira, seus pés grudados no chão. Tentava seguir escutando as provocantes palavras sensuais murmuradas quase dentro do seu ouvido. Mas de repente ficou surda, gélida, imóvel, desabitada. E não sabia que fenômeno físico a acometia porque apenas uma palavra latejava em sua cabeça: “Ana! Ana! Ana!” Por uns momentos buscou reservas de energias, abandonou o habitat preferido e, olhos nos olhos, perguntou: - “Ana? Que Ana é essa?” E, sem perder uma piscada sequer, observou seu jeito tranqüilo de responder, explicando a razão do ato falho. Mas ela já não prestava atenção no que estava sendo dito. Não importava mais. Porque já se fizera outra vez ausente. E seu cérebro tornou-se um dínamo incansável. Pensou em tantas coisas simultaneamente que foi necessário um esforço para que o caos não se instalasse em seus pensamentos. Exigiu de si uma ordem quase didática. Então lembrou-se que em toda a sua vida, percebeu que o nome de cada um é o registro mais individualizado que se pode ter. Sobrenomes podem ser trocados, por equívocos. Mas nomes, não! Por isso é que manteve a atitude de dialogar com seus interlocutores, sempre denominando seus nomes próprios. E, se, por algum motivo, esquecesse do nome de alguém, jamais se arriscaria a usar algum que lhe parecesse ser ou que se assemelhasse a outro, seguindo a sua intuição. Preferia, de modo delicado, fazer a pergunta: - “Desculpe. Minha memória anda atrapalhada. Qual é mesmo o seu nome?” Daí para a frente, sentindo-se segura, valorizava o outro, evocando seu nome apropriadamente. Mas e essa, agora? Seu dínamo nem pensava em parar. Ali, a poucos passos do seu abrigo aconchegante, ainda em posição de acolhimento (afinal, o movimento primeiro e o derradeiro de um abraço, exigem a mesma dinâmica – um entreabrir de braços) ela deixou-se levar por pensamentos longínquos. E a palavra “individualidade” aflorou como a marca indelével que aflorava já em sua adolescência, através de uma estória narrada por sua mãe. Por uns segundos, ouviu nitidamente sua mãe contar-lhe de um rei que queria casar-se e procurava sua eleita entre o povo. Usou um critério curioso para essa eleição: as pretendentes deveriam apresentar-se nuas diante do rei. Depois de muitos nus femininos, o rei chega à sua predileta: aquela que, única e diferentemente das demais, cobriu não o púbis com as mãos, mas os seios. Porque o rei era da sábia opinião de quem assim se apresentasse, estaria valorizando e resguardando sua individualidade, dados os critérios exigidos. Ela já não pensava havia muitos anos nessa estória. Como hoje ela se apresentou em sua memória de forma tão latente e urgente? Continuava impondo-se uma ordem mental para evitar o caos por completo e, já com um passo atrás, olhava para ele com olhos fixos e atentos, buscando reconhecer o ser que lhe oferecia a célula da qual precisava estar plugada para viver: o seu abraço. E a maquininha cerebral pulsando continuadamente. Então, não sabe de onde veio uma força estranha e ouviu-se dizer: - “Meu nome é Zuleica! E para você, Zuzu!” Não sabia se ele ia entender – deveria, porque ele sempre soube que ela era versada em lingüística – que com aquela mensagem ela estava lhe dizendo: - “Olha a diferença entre Ana e Zuleica! Pior: entre Ana e Zuzu!” Sentiu vontade de, papel e caneta nas mãos, fazer uma transcrição fonética daqueles nomes e deixar-lhe ver as diferenças brutais. Mas não foi o que fez. Um passo mais para trás e não sabe bem até hoje, se viu realmente ou se foi um clarão dentro apenas de sua cabeça, que a fez vislumbrar um caminho. Procurou novamente pelos dois elos que, paradoxalmente, prendiam-na para libertá-la, deu dois passos à frente e...novamente em casa! Abraçou-o ternamente e, com costumeira tranqüilidade e com voz serena, murmurou bem pertinho de seu ouvido. – “Tudo bem, amor. Aprendi a lição. De hoje em diante, Zuzu será ainda mais especial. A cada noite você terá a sua Zuzu e ela será também Ana, Beatriz, Clara, Diana, Eliane, Fabíola, Gisele e todas as que faltam para completar o alfabeto. Até que o círculo se complete e você chegue novamente ao Z!” Ao acabar a frase, desligou-se do porto seguro dos seus braços com a certeza de que voltaria ao cais logo mais, como um barco que precisa de reparos para seguir viagem no dia seguinte. Sentiu-se bem com a atitude que tomou, beijou-o com o desejo de sempre, pegou sua bolsa e encaminhou-se para a porta. Caminhando em direção ao trabalho, terminou de ordenar suas idéias e um sorriso bonito e maduro surgiu-lhe nos lábios. Externava o que ia em seu coração: assim como o primeiro soutien, ela estava certa de que jamais esqueceria a primeira vez em que teve trocado o seu nome. Mas que a idéia de ser múltipla, sem perder a sua verdadeira identidade, a estava encantando, não podia negar. E sua maquininha incansável já lhe apontava idéias: roupas, licores, luz de velas, cerejas, músicas suaves, palavras picantes, transparências, doces safadezas, lençóis de cetim, ..., ..., ..., ...


APRENDENDO A VIVER COM CLARICE LISPECTOR


Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.


O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo. Só pegarei inutilmente uma somba que não ocupa lugar no espaço, e o que apenas importa é o dardo. Construo algo isento de mim e de ti - eis a minha liberdade que leva à morte.


Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.


Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Só há uma coisa que me separa de você: o ar entre nós dois. Às vezes para ultrapassar esse quase cruel afastamento, eu respiro na tua boca que então me respira e eu te respiro. Mas só por um único instante, senão sufocaríamo-nos: seria o castigo que se recebe quando um tenta ser o outro.


Amar os outros é a única salavação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.


Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto à própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.


O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago.


*Do livro Aprendendo a viver, Rocco, Rj, 2005