segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MICHAEL - Vera Vieira

Vamos combinar assim: a menina de sete anos chama-se Laura e o seu irmão de quatro anos chama-se Michael. O pai atende pelo nome de João. E a moça que assistia a cena que eles protagonizaram leva o nome de Lúcia.
Pois bem, Lúcia estava no seu automóvel, estacionado em frente a uma loja de material de construção, quando chegaram os três personagens dessa história. João conduzindo uma bicicleta onde levava Michael, em uma cadeirinha própria para crianças da sua idade, e Laura, sentada no espaço logo atrás do seu pai. João saltou da bicicleta e deixou-a sem apoiar em parede ou algo semelhante. Coube a Laura segurar o veículo e tentar equilibrar toda aquela circunstância enquanto João fazia compras na loja. Passados poucos minutos, Laura já era dona da situação: equilibrar a bicicleta era um desafio já ultrapassado. Partiu então a investir no desequilíbrio de Michael. Começou a inclinar a bicicleta para um lado até onde suas forças agüentavam. Michael ficou com medo e começou a gritar e logo depois, a chorar. Não adiantaram suas súplicas: Laura ainda teve tempo de repetir o gesto algumas vezes, até que Michael tentou agredir sua irmã com seu pequenino braço. Neste exato momento João sai da loja e vê a cena: Michael chorando e tentando agredir Laura. João esbravejou ordenando que Michael parasse com o choro. A tentativa do pequeno se justificar como podia recebeu um sonoro “Cala a boca”! João ainda acrescentou: “Quando chegar em casa você vai apanhar”. Laura e João subiram na bicicleta. Lúcia ainda escutou as palavras de Laura, enquanto a família se afastava: “Pai, eu não fiz nada, ele começou a me bater do nada”. O coração de Lúcia se confrangeu. Sabia que Laura e Michael eram crianças e que essas coisas sempre acontecem entre irmãos. Mas não conseguia se conformar com a injustiça. Teve ímpetos de sair correndo do carro e interpelar João e lhe contar o ocorrido. Da melhor forma possível, obviamente, para não lançar culpa em Laura, mas para tentar impedir que a injustiça se prolongasse ainda mais quando Michael chegasse em casa. Quando Lúcia quis procurar pelos três, já não mais os viu: tinham se perdido no meio dos carros estacionados no pátio do supermercado ao lado. Voltou ao seu carro e enquanto esperava uma pessoa que estava na loja, seus pensamentos bombardearam a sua cabeça. Porque em certa ocasião de sua vida, também já se sentira injustiçada. E sabia o quanto é doloroso dizer a verdade e ser desacreditada. Lembrava com nitidez o desespero sofrido para que a verdade fosse restabelecida. Conseguiu reverter a situação lutando com todas as armas éticas possíveis. Quanto mais Lúcia recordava do que havia passado, mais temia por Michael. Como poderia se defender se nem ao menos sabia se expressar perfeitamente? Que forças teria contra um pai como João? Teria ele uma mãe que o protegesse? Laura, na sua inocente infância, continuaria a mentir? E se tudo isso conspirasse, teria a vida de Michael sido marcada negativamente para sempre? A única coisa que Laura queria crer, naquele momento, era que, se Michael realmente sofresse mais injustiças, que a marca que isso lhe causasse fosse, mais tarde, trabalhada e transformada em alavanca contra a injustiça. Que aquela circunstância, e outras que certamente teriam muitas chances de ocorrer, calasse em seu coração profundamente e que ele se tornasse um porta-voz da justiça, por todo e qualquer caminho que a vida lhe fosse indicando. Porque Lúcia também tinha conhecimento de que o caminho mais fácil é pagar injustiça com injustiça, ficou ali, sentada, em uma oração silenciosa, pedindo a todos os deuses que guiassem o caminho de um menino que passou por sua vida por uns minutos apenas. Que lhe dessem sabedoria. E força e voz para que possa defender a si e a outros sem ter que jamais se dobrar ao silêncio imposto de fora para dentro.




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