domingo, 29 de agosto de 2010

O RAIO DA PAIXÃO E A CONSTRUÇÃO DO AMOR- Mário Sérgio Cortella


Nós vivemos numa civilização e, em sociedade, a irracionalidade é a princípio inaceitável. Mas a paixão, que é irracional, é aceita – e é aceita porque somos seres apaixonados.
Não há invenção sem dor e paixão, assim como não há religião sem temor ou terror, ou a possibilidade de conceber um ser superior sem você ter de se reconhecer como inferior. Da mesma forma, não há necessidade de divindade se alguém se considera completamente potente. Mas, se você supõe que uma entidade pode machucar ou “puxar o tapete”, é preciso encontrar modos de agradá-la. A fonte da religião é o terror, mas seu significado vai muito além.
De maneira geral, a Ciência, a Arte, a Filosofia e a Religião são quatro caminhos que têm por trás uma mesma questão: “Por que algo – nós, o mundo, o universo – existe?” Ou: “Por que existimos em vez de não existirmos?”. Reconheça que é um tema que desperta paixões, assim como o futebol e a política...
Observo aqui que a palavra latina “paixão” vem do grego pathos, que é a raiz da palavra patologia, que carrega consigo doença e afecções, ou seja, aquilo que te afeta (quando o mal está dentro, é uma infecção). Por isso, a Paixão de Cristo. Não é “paixão” porque Cristo estava apaixonado por alguém, e sim porque sofreu. Paixão é transtorno, é ebulição. E a metáfora do frescobol* nos ajuda a lembrar que uma das coisas que precisamos aprender é transformar paixão em amor.
A paixão agride, suspende todas as referências, suspende o tempo e o espaço. A paixão é a suprema negação do óbvio. Um casal de apaixonados num banco de parque está sempre sozinho – ao redor não existem crianças, bolas, cães, parque, trânsito lá fora, cidade em volta. A paixão é uma explosão de energia que exige um desgaste imenso para sustentar sua produção de energia. Se ela não for transformada em amor, ela sucumbe em si mesma, implode, se transforma em um buraco negro – buracos negros se originam em estrelas superpoderosas que, num dado momento, deixam de produzir energia e, por isso, passam a consumir apenas a energia que já têm. E aí elas têm, digamos, um momento de paixão fulgurante, que é quando explodem. No momento da explosão são chamadas de supernovas. Mas, depois disso, elas desabam, arrastando tudo ao redor, inclusive a gravidade, e se transformam num buraco negro.
O psicanalista alemão Erich Fromm afirmava que o amor imaturo diz que te ama porque precisa de você. E que o amor maduro diz que precisa de você porque te ama. A paixão é movida por necessidade. Por esse ponto de vista, nós não conseguimos existir sem paixão – mas ela não pode ser contínua, pois não pode fornecer, para usar uma palavra da moda, sua própria sustentabilidade.
A paixão tem de ser o ponto de partida, mas não pode ser o ponto de chegada. Ela precisa ser transformada em algo que seja menos explosivo, e mais propício à constância, como o amor. Gosto muito de uma frase de Roland Barthes, escritor e filósofo francês, que consta de um livro chamado Fragmentos de um discurso amoroso: “Você não ama alguém, e sim ama o amor”.
Uma pessoa que te ama é aquela que guarda o teu amor consigo. Quando ela deixa de te amar, ela também deixa de guardar o teu amor dentro dela.
Assim, o amor é uma sensação de pertencimento recíproco que almeja a plenitude. No fundo, o amor é uma identidade, pois eu me encontro no outro ou na outra. O amor tem turbulências, mas ele não é confrontante, e sim conflitante. O amor, ao contrário da paixão, oferece paz – sendo que paz não é ausência de conflitos, e sim a capacidade de administrar conflitos para que não haja ruptura. Assim, se você consegue guardar o meu amor, se cuida dele, eu fico. Mas, se não cuida, eu parto. Há também os casos em que o amor não é cuidado nem guardado e a pessoa resolver ficar mesmo assim. Nesses casos, isso é conveniência, e não convivência.
Ao contrário do amor, a paixão não tem a ver com o outro, e sim com você mesmo, com a sua obsessão por uma pessoa ou situação. Há pessoas que são viciadas em paixão, na adrenalina da paixão, para alimentar uma necessidade que só pertence a si mesmo, e não ao outro.
Ninguém é isento de paixão, mas é preciso ter em mente que a paixão é eventual e rápida. A paixão, insisto, consome uma energia impossível de sustentar. Se o amor e a vida são uma maratona, a paixão são os cem metros rasos – e todo mundo que já viu uma corrida dessas sabe que o atleta a termina mal conseguindo se sustentar em pé, tamanho o consumo de energia. Ninguém consegue se manter em disparada, há um limite físico para isso. A paixão é como um raio; ela brilha, ilumina, tem uma energia imensa – uma energia que precisa ser contida ou canalizada para não fulminar aquilo que está na sua frente, uma energia que precisa ser transformada para que não origine uma perturbação ou um transtorno.
Ao contrário da paixão, o amor compreende. Compreensão é diferente de dominação ou de aceitação, até porque alguém que não seja um preconceituoso contumaz só pode aceitar ou rejeitar depois de ter compreendido. Compreender é ser capaz de entender as razões, mesmo sabendo que razões são sempre provisórias. Quando você tem consciência da fugacidade das razões, mata qualquer indício de fanatismo e se torna uma pessoa mais acolhedora, apta a receber o outro como a um igual. Caso contrário, está à mercê da paixão, vulcânica e devastadora.
Só quando a paixão arrefece, quando fica sob controle, que pode se transformar em amor e, assim, em paz de espírito. Observo mais uma vez que paz não é ausência de conflito ou a inexistência de desacertos, e sim a capacidade de administrar as turbulências sem se perder.
São inevitáveis as pedras no meio do caminho (quando Drummond escreveu sua poesia, ele estava brincando com Olavo Bilac, que tem um poema chamado No meio do caminho da nossa vida, que, por sua vez, é o primeiro verso da Divina Comédia, de Dante Alighieri).
Mas pedras são apenas pedras, umas grandes, outras menores. São obstáculos a serem contornados. O que não pode acontecer é que as pedras se tornem barreiras. Pedras são fronteiras: elas demarcam um território de risco, mas não indicam impossibilidade.
Impossibilidade é haver paz enquanto há paixão.

*
Explicando a metáfora do frescobol, escrita num outro texto do mesmo autor, no mesmo livro, páginas antes do texto aqui transcrito:

A anulação do outro é o ápice do confronto e o confronto deve ser evitado a todo custo. Isso vale para o terreno das idéias, da convivência, do casamento. Aliás, para o campo dos relacionamentos, o grande pensador Rubem Alves criou uma imagem excelente. Para ele, os relacionamentos devem ser como um jogo de frescobol, e não como uma partida de tênis. Eis aí uma boa lição. No tênis, você usa toda a sua competência para que o outro receba a bola do pior modo possível. Você procura sacar de um jeito que ele não veja nem a cor da bola. Toda vez que o oponente erra, você se congratula. No frescobol, por sua vez, você capricha para que o outro receba a bola do melhor modo que consegue. Quando manda uma bola atravessada, você pede desculpas e procura não repetir mais isso, pois quer repassar a bola ao outro com perfeição. Esse é o sonho, a meta a ser alcançada, embora muitas vezes a vida se pareça mesmo com uma partida de tênis.
Livro: O que a vida me ensinou, Mário Sérgio Cortella, Saraiva:Versar, 2009.


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