terça-feira, 31 de agosto de 2010

CANTEIRO DE ROSA - Frei Betto



Sabença é cuidar do que foi e será, perene como lembrança de estrada de ferro. Passa o trem, passa a boiada, mas a saudade não passa, bóia no coração, volátil. Daí o arrancar do olvido a memória, desenterrar símbolos, cavucar histórias e ressuscitar palavras, que têm canto e plumagem.É o que faz a gente da doutora Carina Guimarães, toda carinho, no cuidado do primo Rosa. Falo do João, o Guimarães, das veredas, da terra do coração, trás montanhas.
Andei por lá trasanteontem, reencantado pelo verbo.
Ave palavra! A estação ferroviária sob a janela, órfã de trens, só o apito agônico e forte a pastar nos ouvidos dos mais velhos, eco nostálgico de um passado perdido; o armazém de seu Floduardo, com suas prateleiras desnudas, sacarias carunchadas, rolos de fumo encobritados no balcão e, num canto, o retrato embigodado do pai rigoroso.
Costurada à venda, o sobrado da família, meia-água à frente de vasto quintal, onde meus olhos tentaram descobrir pontes de formigas. Ali o cenário se recompõe: o quarto em que Rosa brotou; à frente, do lado oposto do corredor, o da avó, enjanelado por dentro; a cozinha tímida; as salas silenciadas da solenidade de pratos e talheres e, agora, transubstanciadas em museu.
Por quartos e salas, sacramentos espalhados por antros e recantos: a Remington em que Rosa cavalgou a alma, desembestando-a em Grande Sertão: Veredas; a coleção de gravatas borboletas, pousada na cristaleira; o diploma encardido da Academia Brasileira de Letras; e retratos do menino míope, engasgado por sentimentos cavilosos, urdidura de gênio; o marido afetuoso sob arcadas de Florença; o pai encapetado com os filhos pequenos; o diplomata encasacado; os amigos, muitos.
Nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais; sou mineiro, declarou a Gunter Lorenz, dois anos antes de se reencantar.
No jardim, os ossos de uma jabuticabeira agasalhada por florida buganvília, a horta fitocultivada, e três degraus de arquibancadas para os visitantes se enlevarem, atentos à recitação dos Contadores de Estória Minguilim, jovens trazidos do risco à magia das letras. A prima preserva tudo, prenhe de zelo e desvelo, ombreada a Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, secretário estadual de Cultura, que de Minas conhece e muito, de nonada à travessia.
Minas toda, tirante a miséria, é patrimônio. E aquela é casa de se visitar, adoçar de cultura o turismo, enfileirar alunos e arranchar escolas, abrir porteiras e deixar os leitores ruminar Rosa, pétala a pétala, desbastando espinhos até embriagar-se do sumo. Epifania.


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