Foto Vera Vieira
Considerando que compactuo com algumas pessoas que pensam que dia dos pais, mães, amigos, namorados, avós e por aí afora, é todo dia e não apenas um dia comercialmente convencionado, transcrevo aqui, nesse dia, com a permissão dos envolvidos, algumas passagens. Trata-se de uma mensagem enviada por nossa sobrinha Ana Márcia ao seu tio, meu marido, por ocasião do dia dos pais. E da resposta que ele deu. Eu queria ter escrito alguma coisa que homenageasse meu pai e meu marido mas diante do que li, acho desnecessário qualquer gesto além de dizer que tenho orgulho do pai que tive porque me ensinou a ter olhos de ver e coração de fazer escolhas certas e, tenho orgulho também, de ter o marido que tenho como pai de minha filha e mais pai do que propriamente avô do meu neto, - amor maior - por ser um humano com H maiúsculo.
Ana Márcia escreveu:
Para meu querido tio, exemplo de pai e avô...
Beijos da sobrinha Ana Márcia
Beijos da sobrinha Ana Márcia
O Pai
Rubem Alves
Quando começo a escrever deixo de ser dono de mim mesmo. Fico à mercê de idéias que nunca pensei. Elas aparecem sem que eu as tenha chamado e me dizem: “Escreva!“ Não tenho outra alternativa. Obedeço. Cummings, referindo-se a um livro seu, ao invés de dizer “quando eu escrevi esse livro“, disse “quando esse livro se escreveu.“ Não foi ele... O livro já estava escrito antes, em algum lugar. Ele só fez obedecer as ordens que o livro lhe deu. Nikos Kazantzakis, autor de Zorba, o Grego, confessou que as letras do alfabeto o aterrorizavam. E isso porque, uma vez soltas, elas se recusavam a obedecer as suas ordens. “As letras são demônios astutos e desavergonhados — e perigosos! Você abre o tinteiro e as solta: elas correm — e você não mais conseguirá trazê-las de novo para seu controle! Elas ficam vivas, juntam-se, separam-se, ignoram suas ordens, arranjam-se a seu bel-prazer no papel — pretas, com rabos e chifres. Você grita e implora: tudo em vão. Elas fazem o que querem...
Rubem Alves
Quando começo a escrever deixo de ser dono de mim mesmo. Fico à mercê de idéias que nunca pensei. Elas aparecem sem que eu as tenha chamado e me dizem: “Escreva!“ Não tenho outra alternativa. Obedeço. Cummings, referindo-se a um livro seu, ao invés de dizer “quando eu escrevi esse livro“, disse “quando esse livro se escreveu.“ Não foi ele... O livro já estava escrito antes, em algum lugar. Ele só fez obedecer as ordens que o livro lhe deu. Nikos Kazantzakis, autor de Zorba, o Grego, confessou que as letras do alfabeto o aterrorizavam. E isso porque, uma vez soltas, elas se recusavam a obedecer as suas ordens. “As letras são demônios astutos e desavergonhados — e perigosos! Você abre o tinteiro e as solta: elas correm — e você não mais conseguirá trazê-las de novo para seu controle! Elas ficam vivas, juntam-se, separam-se, ignoram suas ordens, arranjam-se a seu bel-prazer no papel — pretas, com rabos e chifres. Você grita e implora: tudo em vão. Elas fazem o que querem...
Era meu costume tentar colocar ordem na casa: planejar, determinar de forma lógica e metódica os temas sobre que eu iria escrever. Foi assim que resolvi escrever um livro em que colocaria em ordem e diria tudo o que eu havia pensado sobre a educação. O título seria: A erótica da educação e a educação da erótica. Por cinco anos lutei. As idéias não me faltavam. Mas as palavras se recusaram a me obedecer. O dito livro não queria ser escrito. Wittgenstein passou por experiência semelhante. Por muitos anos ajuntou idéias. Aí, tentou ordená-las sob a forma de um texto filosófico. Eis o que aconteceu, em suas próprias palavras: “Depois de várias tentativas mal sucedidas de fundir meus resultados numa peça única, percebi que eu nunca haveria de ser bem sucedido. O melhor que eu poderia escrever seria nada mais que anotações filosóficas; os meus pensamentos ficavam logo paralisados se eu tentava forçá-los numa única direção contra a sua inclinação natural.
Pois eu não tinha intenção alguma de escrever sobre o dia dos pais. Mas, de repente, passando os olhos num livro que uma amiga me enviou, encontrei a seguinte afirmação: “Tomar uma decisão de ter um filho é algo que irá mudar sua vida inteira de forma inexorável. Dali para frente, para sempre, o seu coração caminhará por caminhos fora do seu corpo.
Aí as idéias puseram a se movimentar por conta própria. Pensei na minha condição de pai. É verdade: pai é alguém que, por causa de um filho, tem sua vida inteira mudada de forma inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. É fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento. Mas há um pai que é um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho (muito embora o filho não saiba disto).
Lembrei-me dos meus sentimentos antigos de pai, diante dos meus filhos adormecidos. Veio-me à mente a imagem de um “ninho“. Bachelard, o pensador mais sensível que conheço, amava os ninhos e escreveu sobre eles. Imaginou que, “para o pássaro, o ninho é indiscutivelmente uma cálida e doce morada. É uma casa de vida: continua a envolver o pássaro que sai do ovo. Para este, o ninho é uma penugem externa antes que a pele nua encontre sua penugem corporal.“ Era isso que eu queria ser. Eu queria ser ninho para os meus filhos pequenos. Queria que meu corpo fosse um ninho-penugem que os protegesse, um ninho que balança mansamente no galho de uma árvore ao ritmo de uma canção de ninar...
Que felicidade enche o coração de um pai quando o filho que ele tem no colo se abandona e adormece! Adormecida, a criança está dizendo: “tudo está bem; não é preciso ter medo“. Deitada adormecida nos braços-ninho do seu pai ela aprende que o universo é um ninho! Não importa que não seja! Não importa que os ninhos estejam todos destinados ao abandono e ao esquecimento! A alma não se alimenta de verdades. Ela se alimenta de fantasias. O ninho é uma fantasia eterna. Jung deveria tê-lo incluído entre os seus arquétipos! “O ninho leva-nos de volta à infância, a uma infância!“ (Bachelard). Aquela cena, a criança adormecida nos braços do pai, nos reconduz à cena de uma criancinha adormecida na estrebaria de Belém! Tudo é paz! Desejaríamos que ela, a cena, não terminasse nunca! Que fosse eterna!
É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de uma criança. É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de um pai. O efêmero e o eterno abraçados num único momento! “Conter o infinito na palma da sua mão e a eternidade em uma hora“: o pai que tem o seu filho adormecido nos seus braços é um poeta! Essas palavras do poeta William Blake bem que poderiam ser suas. Um homem que guarda memórias de ninho na sua alma tem de ser um homem bom. Uma criança que guarda memórias de um ninho em sua alma tem de ser calma!
Mas logo o pequeno pássaro começará a ensaiar seus vôos incertos. Agora não serão mais os braços do pai, arredondados num abraço, que irão definir o espaço do ninho. Os braços do pai terão de se abrir para que o ninho fique maior. E serão os olhos do pai, no espaço que seus braços já não podem conter, que irão marcar os limites do ninho. A criança se sente segura se, de longe, ela vê que os olhos do seu pai a protegem. Olhos também são colos. Olhos também são ninhos. “Não tenha medo. Estou aqui! Estou vendo você“: é isso o que eles dizem, os olhos do pai.
O que a criança deseja não é liberdade. O que ela deseja é excursionar, explorar o espaço desconhecido – desde que seja fácil voltar. Tela de Van Gogh. É um jardim. No lado direito do jardim, mãe e criança que acabam de chegar. Ao lado esquerdo o pai, jardineiro, agachado com os braços estendidos na direção do filho. É preciso que o pai esconda o seu tamanho, que ele esteja agachado para que seus olhos e os olhos do seu filho se contemplem no mesmo nível. A cena é como um acorde suspenso, que pede uma resolução. É certo que o filho largará a mão da mãe e virá correndo para o pai... E a fantasia pinta a cena final de felicidade que o pintor não pode pintar: o pai pegando o filho no colo, os dois rindo de felicidade...
O tempo passa. Os pássaros tímidos aprendem a voar sem medo. Já não necessitam do olhar tranquilizador do pai. É a adolescência. Ser pai de um adolescente nada tem a ver com ser pai de uma criança. Pobre do pai que continua a estender os braços para o filho adolescente, como na tela de Van Gogh! Seus braços ficarão vazios. Como se envergonharia um adolescente se seu pai fizesse isso, na presença dos seus companheiros! É o horror de que os pássaros companheiros de vôo o vejam como um pássaro que gosta de ninho! Adolescente não quer ninho. Adolescente quer asas. Os ninhos, agora, só servem como pontos de partida para vôos em todas as direções. Liberdade, voar, voar... A volta ao ninho é o momento que não se deseja. Porque a vida não está no ninho, está no vôo. Os ninhos se transformam em gaiolas. Se eles procuram os olhos dos pais não é para se certificar de que estão sendo vistos mas para se certificar de que não estão sendo vistos! Aos pais só resta contemplar, impotentes, o vôo dos filhos, sabendo que eles mesmos não podem ir. Nos espaços por onde seus filhos voam os ninhos são proibidos. Mas eles terão de voltar ao ninho, mesmo contra a vontade. E o pai se tranquiliza e pode finalmente dormir ao ouvir, de madrugada, o barulho da chave na porta: “Ele voltou..."
Mas chega o momento quando os filhos partem para não mais voltar.
Através da minha janela vejo um ninho que rolinhas construíram nas folhas de uma palmeira. A pombinha está chocando seus ovos. Vejo sua cabecinha aparecendo fora do ninho. Mas numa outra folha da mesma palmeira há um outro ninho, abandonado. Esse é o destino dos ninhos, de todos os ninhos: o abandono.
Gibran Khalil Gibran escreveu, no seu livro O Profeta, um texto dedicado aos filhos. Não sei de cor suas precisas palavras. Mas vou tentar reconstrui-las. É aos pais que ele se dirige. “Vossos filhos não são vossos filhos. Vossos filhos são flechas. Vós sois o arco que dispara a flecha. Disparadas as flechas elas voam para longe do arco. E o arco fica só.
Esse é o destino dos pais: a solidão. Não é solidão de abandono. E nem a solidão de ficar sozinho. É a solidão de ninho que não é mais ninho. E está certo. Os ninhos deixam de ser ninhos porque outros ninhos vão ser construídos. Os filhos partem para construir seus próprios ninhos e é a esses ninhos que eles deverão retornar.
Assim é na natureza. Assim é com os bichos. Deveria ser conosco também. Mas não é. Quem é pai tem o coração fora de lugar, coração que caminha, para sempre, por caminhos fora do seu próprio corpo. Caminha, clandestino, no corpo do filho. Dito pela Adélia: “Pior inferno é ver um filho sofrer sem poder ficar no lugar dele.“ Dito pelo Vinícius, escrevendo ao filho: “Eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua..."
Sei que é inevitável e bom que os filhos deixem de ser crianças e abandonem a proteção do ninho. Eu mesmo sempre os empurrei para fora.
Sei que é inevitável que eles voem em todas as direções como andorinhas adoidadas.
Sei que é inevitável que eles construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho abandonado no alto da palmeira...
Mas, o que eu queria, mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo...
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Resposta do tio à sobrinha Ana Márcia:
Curitiba, 9 de agosto de 2009 - Dia de S. Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein).
Cara sobrinha Ana Márcia,
Obrigado pelo envio desse belíssimo texto do Rubem Alves.
E obrigado pela sua dedicatória, que, embora distante da verdade, soa muito agradável.
De fato, toda a razão a Gaston Bachelard e ao Rubem Alves: fazer do seu colo um ninho para uma criança e vê-la e sentí-la abandonar-se ao sono, confiante e totalmente entregue aos braços que a acolhem é uma experiência única e incomparável. Conquanto sabedores de quão inóspito e rude lhes será o mundo que nos cerca, em muitos momentos de muitos dias; a despeito de conscientes do vale de lágrimas e sangue que, por vezes, esta vida fatalmente lhes reservará; essa é uma das mais nobres funções que um ser humano pode desempenhar: dar o seu colo a uma criança. Em todos os momentos da vida - e sabemos que não são poucos ! - em que sentimos a angústia nos dominar, em todos os inúmeros instantes de aflição, em todos os incontáveis minutos de desgosto, em todas as inumeráveis ocasiões de tribulação, em todos os infinitos tempos de sofrimento, em todas as numerosas oportunidades de pesar, sempre que nos sentimos pequenos e oprimidos, ansiosos e dilacerados, acabrunhados e tristes... não é outra coisa pelo quê ansiamos desesperadamente, senão por ...um colo ! E nós, adultos e aparentemente maduros, haveremos de nos afirmar e de negá-lo; mas essa é a verdade que repousa, tranqüila e calma - como são as verdades mais essenciais - no fundo de nossa alma: eis nosso mais autêntico e profundo desejo... um colo ! Um colo ao qual nos possamos abandonar, cerrar os olhos, esquecer do mundo e entregar-nos confiantemente ao sono, porque, ali - como em nenhum outro lugar em todos os tempos ! - nos sentimos seguros, amparados, protegidos, resguardados, abrigados e defendidos contra tudo e contra todos os males, como naqueles braços que nos envolveram quando criança.
Não tenho um número muito grande de convicções, mas essa é, certamente, uma delas... uma de nossas maiores saudades, uma de nossas mais arraigadas nostalgias, um de nossos mais fortes apetites, uma de nossas mais vivas sofreguidões... é encher a falta, é preencher a escassez, é rechear a penúria, é fartar a indigência, é abarrotar a miséria... de colo !
E que ninguém ouse, diante de si mesmo, em presença de seu próprio eu, no seu silêncio essencial, recusar... o ser humano tem fome de colo !
J. R. Vieira
Cara sobrinha Ana Márcia,
Obrigado pelo envio desse belíssimo texto do Rubem Alves.
E obrigado pela sua dedicatória, que, embora distante da verdade, soa muito agradável.
De fato, toda a razão a Gaston Bachelard e ao Rubem Alves: fazer do seu colo um ninho para uma criança e vê-la e sentí-la abandonar-se ao sono, confiante e totalmente entregue aos braços que a acolhem é uma experiência única e incomparável. Conquanto sabedores de quão inóspito e rude lhes será o mundo que nos cerca, em muitos momentos de muitos dias; a despeito de conscientes do vale de lágrimas e sangue que, por vezes, esta vida fatalmente lhes reservará; essa é uma das mais nobres funções que um ser humano pode desempenhar: dar o seu colo a uma criança. Em todos os momentos da vida - e sabemos que não são poucos ! - em que sentimos a angústia nos dominar, em todos os inúmeros instantes de aflição, em todos os incontáveis minutos de desgosto, em todas as inumeráveis ocasiões de tribulação, em todos os infinitos tempos de sofrimento, em todas as numerosas oportunidades de pesar, sempre que nos sentimos pequenos e oprimidos, ansiosos e dilacerados, acabrunhados e tristes... não é outra coisa pelo quê ansiamos desesperadamente, senão por ...um colo ! E nós, adultos e aparentemente maduros, haveremos de nos afirmar e de negá-lo; mas essa é a verdade que repousa, tranqüila e calma - como são as verdades mais essenciais - no fundo de nossa alma: eis nosso mais autêntico e profundo desejo... um colo ! Um colo ao qual nos possamos abandonar, cerrar os olhos, esquecer do mundo e entregar-nos confiantemente ao sono, porque, ali - como em nenhum outro lugar em todos os tempos ! - nos sentimos seguros, amparados, protegidos, resguardados, abrigados e defendidos contra tudo e contra todos os males, como naqueles braços que nos envolveram quando criança.
Não tenho um número muito grande de convicções, mas essa é, certamente, uma delas... uma de nossas maiores saudades, uma de nossas mais arraigadas nostalgias, um de nossos mais fortes apetites, uma de nossas mais vivas sofreguidões... é encher a falta, é preencher a escassez, é rechear a penúria, é fartar a indigência, é abarrotar a miséria... de colo !
E que ninguém ouse, diante de si mesmo, em presença de seu próprio eu, no seu silêncio essencial, recusar... o ser humano tem fome de colo !
J. R. Vieira
Que lindo,Vera
ResponderExcluirQue lindo,JR
Estou sempre em paz comigo mesma porque dei meu colo a uma criancinha muito amada, hoje uma moça de quase 20 anos
" sabedores de quão inóspito e rude lhes será o mundo que nos cerca, em muitos momentos de muitos dias; a despeito de conscientes do vale de lágrimas e sangue que, por vezes, esta vida fatalmente lhes reservará; essa é uma das mais nobres funções que um ser humano pode desempenhar: dar o seu colo a uma criança".
Que lindo,Vera!
Que lindo,JR!
Talvez a maior das razões para estar em paz comigo mesma é ter dado (dei,dou e darei) meu colo aos filhos e à neta
Beijos aos dois,parabéns pelos coraçõers gentis que ambos possuem e ao neto pelos avós que recebeu da vida
Thereza.