quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Estar sem estar - Vera Vieira

Tela de Marijose Terán
Diante do caixa, nem bem ela acomodou as sacolas de compras nas mãos, para deixar a panificadora, ouviu soar o alarme da porta principal. Nas manhãs de domingo aquela panificadora vira um formigueiro. Todos os olhares convergiram para a porta. E o que viram foi um rapaz, com um pequeno pacote de pães, dando um giro e retornando ao recinto. Nesse momento, ela já estava saindo e, cruzando com o rapaz, ouviu claramente o que disse: “Putz! Passei direto! Que mico!” Depois nada mais viu porque saiu em direção ao carro, sem olhar para trás.

Enquanto dirigia ficou imaginando qual seria o motivo do rapaz ter tido aquele comportamento. Notava-se que era uma pessoa do bem, que aquilo foi um lapso, não uma equivocada tentativa de furto. Imaginou-se no lugar da pessoa e, só de pensar ficou vermelha, como sempre acontece ao se sentir insegura, quando a timidez aflora ao seu rosto.

Um jovem. Era um jovem! Seria apenas distração, da pura, da boa? Teriam seus olhos seguidos uma moça bonita que ele nem se deu conta de que teria que passar pelo caixa? Estaria ouvindo uma música no MP3 que lhe trazia boas recordações e acabou viajando com elas? Seria a pressa, comum característica da juventude? Ou a falta de hábito de sair para comprar pães? Ela não soube, nem saberá jamais.

Mas compreendeu. Não porque tenha vivido experiência igual. Mas porque sabe que, muitas vezes, nós estamos sem estar. O corpo é nosso, mas nem sempre ele obedece à mente. São tantas as preocupações, tantas as tarefas, tão pouco tempo para o muito fazer. Ou são tantas as alegrias, tão boas emoções, lindos encontros, muitos felizes acontecimentos para tão pequeno coração. Então parece que a nossa mente mora longe do nosso corpo. Parecem estar divorciados, se esquecem que são uma unidade.

Sim, ela bem compreendia a situação de querer fazer uma coisa e acabar fazendo outra. Sim, muitas vezes se perguntou, tardiamente, por que deixou de falar o que sentia? Ou, ao contrário, por que se expôs mais do que queria? Por que recuou se o desejo era ter avançado? São tantas as mordaças, tantos os grilhões impedindo o caminhar! E essa reincidente postura de ser um coração-ouvinte!

De repente, quando se deu conta, o portão da garagem da sua casa já estava se abrindo. Riu para si mesma ao pensar que um simples acontecimento do cotidiano a fizera pensar em tantas e variadas coisas. Inclusive no fato de que, sem pensar em trajetórias e semáforos e esquinas mil, dirigiu-se automaticamente para casa. Riu ainda mais quando exclamou baixinho: "Putz, passei direto!" E manobrou seu carro para ir à mercearia que ficava um pouco abaixo, na mesma rua da sua casa...



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